Tenho pesquisado sobre o ingresso de estudantes oriundos da rede pública no ensino superior para o trabalho de conclusão de curso (TCC) que devo apresentar no mês de fevereiro próximo. Vendo a atual situação da saúde pública com a pandemia do SARS-CoV-2, não me surpreende as declarações do atual Ministro da Educação do governo Bolsonaro ao defender a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em 2021, ainda com altas taxas de disseminação descontrolada do vírus.
Segundo ele, não há injustiça na realização do ENEM2020, mesmo após um ano em que as escolas públicas estiveram fechadas e com mais um obstáculo imposto aos estudantes sem estrutura para o ensino remoto. Argumentou o ministro:
Vale lembrar que, desde 2012, nós temos uma lei que reserva 50% de todas as vagas das universidades federais para alunos oriundos de escolas públicas. Então, em outras palavras, não é uma injustiça que estamos cometendo ao fazer o Enem mesmo sem acesso à internet. É claro, sempre há perdas, mas os alunos de escola pública praticamente competem com alunos de escolas públicas. Nesse ponto, não há injustiça (G1 Santos, 2021)
O ministro se referia a Lei 12.711/2012 (lei das cotas) que versa em seu Art. 1º “As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” (Brasil, 2012), assim, esses estudantes duplamente prejudicados estariam concorrendo com estudantes da mesma situação por terem as vagas reservadas.
Não vou me ater a demonstrar o quanto esse ministro, como os demais desse governo, são ignorantes, sem capacidade de argumentos plausíveis para justificar a incapacidade desse governo em gerenciar, independentemente da função, principalmente, Saúde e Educação.
Faremos a críticas à lei citada por ele, o que já demonstraria a manutenção das injustiças no acesso ao ensino superior brasileiro dos últimos vinte anos. Desde FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro há uma manutenção das desigualdades sociais e favorecimento do ensino superior privado.
A lei em si, foi uma vitória dos movimentos sociais, mas como qualquer vitória sob o capitalismo é uma vitória parcial e só reforça a subserviência dos governos ao capital, aonde suas ações sociais favorecem mais o grande empresariado, no caso da educação privada, do que a busca por uma solução social definitiva.
Segundo os dados do Censo da Educação Básica 2019, disponível no portal do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), em 2019 haviam 8.400.284 matriculados no ensino médio, desse total 934.393 eram alunos da rede privada de ensino, o que corresponde a 11,12%.
As injustiças já começam no ensino médio, onde para os 88,88% dos estudantes da rede pública (esfera federal, estadual e municipal) segundo o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) “Entre 2014 e 2015, 12,7% dos alunos matriculados na primeira série do ensino médio abandonaram as salas de aula, o mesmo acontecendo com 12,1% dos matriculados na segunda série e 6,7% dos matriculados na terceira série.” (CRUB, 2018), já para o INEP a taxa de evasão na transição 2016/2017 ficou em 9,1% nesse nível de ensino (INEP, 2019, p. 1). Um dos fatores dessa evasão é em razão de alcançarem os 16 anos, quando esses estudantes são “forçados” a buscar o mercado de trabalho para ajudar na renda familiar (Instituto Unibanco). Mesmo os que conseguem chegar ao 3º ano do ensino médio, não terão uma formação adequada, graças a precarização da rede cujos governos drenam recursos da educação com a corrupção em todas as esferas.
O que temos então com a lei 12.711/2012, na prática, é a manutenção da desigualdade e injustiça, onde 7.465.891 (88,88%) de estudantes da rede pública disputam entre si 50% das vagas na universidade pública, enquanto os outros 50% das vagas serão disputadas por apenas 11,12% de alunos da rede privada. Se seguirmos essa proporção, levando em consideração os cursos mais concorridos ou mais reconhecidos socialmente como Medicina e Direito, ai é que as desigualdades e injustiças se aprofundam.
Peguemos como exemplo um curso qualquer com o número de 60 vagas para uma nova turma, utilizando a proporcionalidade de 11,12% privado e 88,88% de estudantes da rede pública, ficaria assim a proporção em relação à concorrência:
Tabela 1 – Simulação de quantidade de alunos e concorrência para ocupação de vagas reservadas
Candidatos | Ampla concorrência (11,12%) | Cota rede pública(88,88%) |
30 vagas | 30 vagas | |
265 | 29,47 (candidatos) | 235,53 (candidatos) |
1 (por vaga) | 7,85 (por vaga) |
Fonte: elaborado pelo autor.
Grande parte dos estudantes que não conquistaram a vaga na rede pública — pois não á vagas para todos —, serão os clientes da rede privada, uma parte pagando mensalidades, outra sendo subsidiada com o Financiamento Estudantil (FIES). Outra parcela ainda maior terá custeado o curso nessas IES privadas através de recursos públicos com bolsas integrais ou parciais pagas pelo Programa Universidade para Todos (PROUNI). Nesses programas nenhum governo vai mexer, pois, são os empresários que bancam as campanhas dos políticos eleitos.
Os estudantes oriundos da rede pública que conquistar a vaga, seja no curso de sua opção, ou num curso cujo sua nota se aproxima da “nota de corte” para o ingresso, muitos ficam na opção de curso que a nota dá, esse foi um dos resultados da minha pesquisa. Mas há uma condição perversa que a lei não mudará, e no ingresso do ensino superior que é, novamente esse estudante, já no mercado de trabalho terão o desafio de realizar um curso e, simultaneamente, trabalhar para ajudar na renda familiar, ou da sua própria, quando o curso é distante da residência de sua família, em outra cidade.
Realizar um curso superior sob essas condições levam a duas constatações: a primeira é que muito desses estudantes que têm que conciliar trabalho e estudo se evadirão, no Brasil a taxa média de evasão está em torno de 22% (CRUB, 2015); a segunda é que os que resistirem ao desafio, acabam ficando retidos, levando um curso de 4 anos, para 6 ou até mesmo 8 anos, até conseguir concluí-lo
A evasão do ensino superior foi o tema para meu trabalho de TCC, houve sim, um aumento no ingresso da classe-que-vive-do-trabalho na universidade, mas o que se constata é que ela não permanece. Os Fatores dessa evasão, em especial no curso de Licenciatura em Ciências Humanas foi nosso campo de pesquisa. Os fatores detectados entre os estudantes oriundos da rede pública no curso de LCH nos leva a concluir que os fatores se repetirão enquanto se manter uma sociedade dividida em classes e sob o modo de produção capitalista. Como vimos no caso do ENEM/2021 onde, segundo o ministro Milton Ribeiro “É claro, sempre há perdas […]”
Referências
Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB). “CRUB SEDIA SEGUNDA EDIÇÃO DO SEMINÁRIO “EVASÃO NO ENSINO SUPERIOR.”” 23 out. 2015. Disponível em: http://www.crub.org.br/blog/crub-sedia-segunda-edicao-do-seminario-evasao-no-ensino-superior/. Acesso em: 25 jan. 2021.
Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB). OPINIÃO: A EVASÃO NO ENSINO SUPERIOR. 2018. CRUB.ORG. Disponível em: http://www.crub.org.br/blog/a-evasao-no-ensino-superior/. Acesso em: 25 jan. 2021.
G1 Santos. “Ministro da Educação diz que abstenção no Enem era esperada: ‘Não vão ser prejudicados.’” G1, 24 jan. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/educacao/noticia/2021/01/24/ministro-da-educacao-diz-que-abstencao-no-enem-era-esperada-nao-vao-ser-prejudicados.ghtml. Acesso em: 25 jan. 2021.
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Indicadores de fluxo escolar apontam queda na evasão para ensino fundamental e médio. Brasília, INEP, 2019. Portal Inep. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/indicadores-de-fluxo-escolar-apontam-queda-na-evasao-para-ensino-fundamental-e-medio/21206#:~:text=A%20taxa%20de%20evas%C3%A3o%20no,%25%20para%209%2C1%25. Acesso em: 25 jan. 2021.
Instituto Unibanco. Guia sobre abandono e evasão escolar: um panorama da educação brasileira. Rio de Janeiro. Observatório de Educação. Disponível em: https://observatoriodeeducacao.institutounibanco.org.br/em-debate/abandono-evasao-escolar?utm_source=google&utm_medium=search&utm_campaign=jornalistas_evasao. Acesso em: 25 jan. 2021.