“Cê conhece a história daquele aluno problemático/ cujos heróis viraram vultos negros nos livros didáticos” (Herói de preto é preto, Gíria Vermelha.)
A massa proletarizada faz história nas ruas das periferias, nas fábricas, nas conduções lotadas, nas ocupações, nos canaviais, nas escolas sem estrutura, em um monte lugares e territórios, porém, não costumam anotar seus feitos históricos. Essa tarefa caberia aos intelectuais, as organizações políticas e seus dirigentes e, passado algum tempo, aos historiadores.
No entanto, devido à péssima relação que os analisadores da história estabelecem com os fazedores de história, as conclusões que os primeiros tiram sobre a participação dos últimos nos grandes acontecimentos são, quase sempre, carregadas de preconceitos.
Considerando o peso racial-negro do proletariado brasileiro e o racismo teórico embrenhando nas lentes de muitos destes intelectuais, a situação se agrava mais ainda. Para a grande maioria, a massa negra proletarizada não passa de uma platéia bestializada frente à história e seus grandes eventos. Não fazemos história, apenas assistimos seus desdobramentos de maneira passiva.
Para esses senhores tudo se faz por cima e sem pressão social vinda de baixo. No processo de independência do Brasil, por exemplo, é comum a afirmação de que não passou de uma negociação articulada entre as elites, menosprezando, assim, o potencial explosivo da massa escrava que poderia “haitianizar” o Brasil. O ato preventivo das elites portuguesas, brasileira e inglesa se assentava no medo de uma “onda negra”.
Os anos pós 1822 foram de massacres de negros, índios e sertanejos, sobretudo no período regencial para conter levantes como dos Malês na Bahia e a Balaiada no Maranhão. Ou seja, a consolidação do Estado imperial brasileiro não se deu sem lutas encarniçadas entre as classes da época, cujos principais pólos opostos eram os senhores de escravos e os negros escravizados.
O mesmo aconteceu com a abolição da escravidão (1888), seguida da Proclamação da República (1889). A Lei Áurea foi aprovada em meio a uma situação pré-insurrecional que o país vivia em função da ruptura do exército, da igreja e dos senhores de escravos com o Império e da radicalização das lutas contra a escravidão levadas a cabo por alguns grupos de abolicionistas e pelos próprios negros. Sem seus principais pilares de sustentação e com levantes populares em curso, a elite escravocrata não tinha mais nada a fazer a não ser abolir a escravidão e entregar o poder para que os chefes militares procedessem à transição republicana.
A República também se consolidou com sangue de negros, índios e pobres. Levantes como o de Canudos, Contestado, Vacina, Chibata são provas cabais de que os “de baixo” não deixaram os acontecimentos passar aos seus olhos como massa bestializada. Porém, para a grande maioria dos historiadores, inclusive alguns marxistas, esses levantes são caracterizados como “Revoltas”, simplesmente por não se encaixar no modelo de movimentos liberais europeus do século XIX.
Poderíamos seguir dando exemplos e mais exemplos sobre como somos tratados com “vultos históricos”, mas creio que esses já bastam para mostrar a carga de etnocentrismo e eurocentrismo impregnado nas leituras dos acontecimentos históricos em nosso país.
Porém, para a classe média brasileira, não só por ser classe média, mas por ser branca e por está mais próxima desses intelectuais, as lentes teóricas ganham dimensão de lupas fixadas em olhos de Tandera. Dizem sem tergiversar: “foi à classe média raivosa que derrubou Dilma”! Peraí, mas a classe verde-amarela em seus atos bizarros realizados aos domingos? Legal!
Por essa ótica racializada, o que a massa negra proletarizada protagonizou de enfrentamentos nos últimos anos no Brasil é “café pequeno” perante ódio de uma classe social intermediária. São incapazes de considerar que a classe média ou a pequena burguesia brasileira sequer conseguiu cumprir sua função social de ganhar o proletariado para a política da burguesia, e isso não pode ser desconsiderado!
As pesquisas dos próprios institutos burgueses realizados no auge das mobilizações verde-amarelas contra o PT em 2015 mostraram que era entre os setores mais empobrecidos que prevalecia uma grande rejeição tanto ao PT quanto aos demais partidos da ordem. Os mais pobres queriam que todos caíssem fora, tal como o PSTU ousou defender, enquanto entre os setores médios e mais escolarizados da sociedade seguia a confusão provocada pela falsa polarização PT-PSDB, a ponto de que nos atos da Frente Popular e nos da Direita a composição social e o nível de escolaridade chegaram a ser praticamente idênticos.
Com o mínimo de pudor teórico seria possível chegar à conclusão de que era a classe média e própria burguesia que estavam divididas naquele contexto, algo extremamente importante para garantir a unidade do proletariado e, de quebra, arrancar um pedaço das classes intermediárias para uma política anti-sistêmica. Mas não! Infelizmente a maioria das organizações da esquerda brasileira, que vivem com consciência socada no mundo branco da pequena burguesia acadêmica, preferiu alardear que o Brasil estava à beira de um golpe de Estado e correram para socorrer o PT, justo no momento em que o proletariado vinha rompendo em massa com o petismo.
Só para citar um exemplo. No dia 20 de novembro de 2015 Lula recebeu uma vaia histórica em Salvador e não foi proveniente do gogó da classe média, ela ecoou dos pulmões do proletariado negro do tradicional bairro da Liberdade. É importante lembrar que Salvador é um necrotério de jovens negros e que as desigualdades de rendimentos entre brancos e negros na referida capital é uma das maiores do país.
O silêncio das máquinas na indústria brasileira também nunca havia perturbado tanto a patronal como nos últimos cincos anos, conforme dados apresentados pelo DIESSE. E quando os operários cruzam os braços o coração do capitalismo bate mais lento do que quando uma multidão de gente pálida caminha pela orla marítima de bairros como de Copa Copacabana. E mais, as greves são momentos importantes para a educação política da nossa classe. Segundo Lênin “(…) Só a ação educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida das suas forças, alarga o seu horizonte, aumenta as suas capacidades, esclarece a sua inteligência e tempera a sua vontade” (Relatório Sobre a Revolução de 1905).
A onda de greves registradas no país nos últimos anos de governo da Frente Popular era expressão da ruptura em massas do proletariado brasileiro com o PT. Mesmo as “Jornadas Junho” de 2013 só aconteceu porque se deu por fora dos aparatos petistas. E esses registros não podem ficar confinados as minúsculas notas de rodapé, pois foi com essa omissão consciente que o PT passou a sustentar a tese de “onda conservadora” que por sua vez justifica a tese do “golpismo”.
Pra economizar palavras, lembremos que as rupturas revolucionárias só são possíveis de acontecer devido à consciência conservadora do proletariado que luta mortalmente para “conservar” seus direitos, seus empregos, a qualidade de vida de seus familiares e, no caso da juventude negra brasileira, para conservar suas vidas que as centenas de milhares estavam sendo ceifadas na gestão PT-PMDB. Diferente do que se costuma pensar, não existe incompatibilidade entre consciência conservadora e processos revolucionários.
Aos trotskistas que foram engrupidos por essas teses nada melhor do que o próprio Trotsky para rebatê-la:
“As bruscas mudanças de opinião e sentimentos das massas numa época de revolução derivam, portanto, não da flexibilidade e mobilidade da mente humana, mas do seu exato oposto, do seu profundo conservadorismo.” (História da Revolução Russa)
Foi para “conversar” suas escolas abertas que a juventude negra e pobre das periferias de São Paulo ocupou as mesmas, chegando a jogar Alckmin (PSDB) contra a parede, enquanto isso quase toda esquerda elegia como prioridade salvar o governo petista e a democracia burguesa.
Foi por esse viés que o grosso da Intelectualidade e da burocracia que ajudou a eleger Lula e Dilma ressuscitaram às centenas de suas tumbas climatizadas e voltaram à cena política com a mesma arrogância de antes, como se nada tivesse acontecido nos últimos 14 anos de Frente Popular no poder. Na mira dos “mortos vivos” encontram-se o PSTU e a defesa da tese do “golpe” e da “onda conservadora” na qual seguirão agarrados até as eleições de 2018.
Por outro lado, tentam passar uma borracha na consciência histórica do proletariado. Para participar dos “seus atos” contra Temer é proibido fazer balanço dos 14 anos de governo do PT e chamar o “Fora todos eles”. Para estes, unidade de ação se faz sem diversidade de opiniões.
Antes éramos sectários porque denunciávamos as alianças que o PT fez com a Direita para atacar os trabalhadores, hoje somos “golpistas” por não ter defendido o PT contra os ataques de seus antigos aliados da Direita. Tudo agora se resume a ser de direita ou ser de esquerda. Erundina que ontem era de direita por está no PSB hoje é de esquerda por está candidata no PSOL e amanhã quando retornar ao seu partido, o Raiz, será novamente de direita ainda que os projetos se mantenham os mesmos.
Nessa panaceia pós-moderna e oportunista não existem mais interesses de classes e os partidos não são mais caracterizados pelo conteúdo dos seus programas ou pela sua base social. Somem as classes, somem os programas, some a história!
Assim fica difícil reconhecer que a burguesia amputou as pernas políticas do petismo e do lulismo porque as mesmas não conseguiam mais passar rasteiras nos trabalhadores sem que esbarrassem em resistências agudas. A burguesia fez isso não por odiar o PT, mas como medida preventiva contra possíveis ascensos vindos dos “de baixo” que o PT não conseguia mais controlar.
Em nosso entendimento o que existe de fato é uma reação em cadeia da burguesia contra uma onda negra e prole que vem ganhando o país desde antes das “Jornadas de Julho” e o PT foi parte fundamental dessa reação dos “de cima” , vide o que fizeram com o Estatuto da Igualdade Racial, a dissolução da Seppir, da Secretaria de Promoção para as Mulheres, o engavetamento do kit Anti-homofobia, da política da destruição da politica de reforma agrária e de titulação de terras quilombolas, a aprovação da Lei antiterrorismo (leia-se anti- movimentos sociais), entre tantos outros ataques que seguem a todo vapor no governo Temer.
Acontece que o PT, que foi capataz da burguesia durante os anos que governou o país, agora quer transformar toda a esquerda em seus capitães-do-mato. Ao capataz era dada a função de ser o malfeitor dos escravos, enquanto para aos capitães-do-mato era atribuída à tarefa de resgatar os negros aquilombados e trazê-los de volta aos pelourinhos e aos chicotes do capataz.
Esse papel nefasto de reconduzir o proletariado negro aos braços do PT nós jamais cumpriremos, justamente por acreditarmos que quem vai passar por cima do cadáver de Temer e do parlamento burguês deste país são os mesmos que se negaram a defender o PT do chicote da burguesia, porque pelo PT também foram chicoteados. Sim, são aqueles que vivem no fundão das favelas, das periferias, das escolas públicas, das fábricas e dos territórios aquilombados onde pouco se registra o muito que se faz e por onde as lentes teóricas dos verdadeiros bestializados não costumam passar em dias de luta!
*Hertz Dias é formado em História, militante negro e do movimento hip-hop e quadro do PSTU/MA