Durante um diálogo sobre comunicação à classe trabalhadora através do blog recebi a sugestão de Fábio Machado para leitura da obra Muralhas da linguagem (2004) de Vito Giannotti. Segundo Machado, a leitura me ajudaria a melhorar a linguagem utilizada em minhas postagens, que para ele era um vocabulário “difícil”, que dificultava o entendimento do público com o qual eu buscava dialogar. A sugestão estava em torno de mudar palavras que sintetizavam conceitos mais amplos por seus sinônimos, ou seja, uma comunicação mais popular. Meu principal argumento para defender como escrevia era que eu nem sempre entendia o sentido das “novas” palavras com que tinha contato, o que me levava à curiosidade de as entender e incorporando-as ao meu vocabulário.
Anos depois, em 2015, tive a oportunidade de participar de um curso de oratória ministrado pelo jornalista e escritor Vito Giannotti (1943 – 2015)1, promovido pelo SEEB-MA. Durante o curso, Giannotti dá dicas e exemplos de como a comunicação entre as lideranças de movimentos sociais deve ocorrer, seu curso baseava-se na tese de seu livro, onde segundo o autor as lideranças ao incorporarem o que ele chama de os “ês” da linguagem (juridiquês, economês, contabilês, sindicalês, etc.) precisam traduzi-los de forma simples aos indivíduos que representam.
Palavras em economês, juridiquês, psicologuês, informatiquês e mais dez ês. Este tipo de linguagem é uma muralha que impede qualquer comunicação (GIANNOTTI, 2004, p. 102).
Para o autor, essa tradução — na oratória e nos escritos — aproximaria as lideranças ao público-alvo e levaria à compreensão do que se fala, assim, derrubaria as muralhas existentes na comunicação entre os indivíduos da mesma classe.
Giannotti defende que a linguagem difícil — não inteligível — é um instrumento de dominação de classes, mantendo a separação entre os da Casa Grande (patrões) e os da senzala (empregados). Para ele, a incorporação dessa linguagem pelas lideranças sindicais e populares, sem a devida tradução ou simplificação aos níveis do entendimento dos trabalhadores, reproduziria a divisão da classe operária e a dominação da classe burguesa.
Durante o curso ele mostrou vários exemplos de como simplificar a linguagem ao falarmos em uma reunião de bairro, plenária de trabalhadores e sabermos identificar o público ao qual nos dirigimos. Defendeu a manutenção dos veículos de comunicação que melhor conseguem pôr em prática uma linguagem que rompe as ditas muralhas, dizia: “um sindicato ou partido sem jornal é um exército sem armas”. Na ocasião citou o Jornal Opinião Socialista do PSTU, editado há 32 anos, jornal do qual recebo quinzenalmente desde que me filiei.
Ao final do curso tive a audácia de fazer uma pergunta a ele: ao realizar a simplificação das palavras da língua portuguesa, usando sinônimos, não estaríamos mantendo os trabalhadores na “ignorância”, tornando-os dependentes de quem a traduza? Perguntando de outra maneira: derrubar as muralhas da linguagem não significaria a inexistência das mesmas pelo conhecimento, mais efetivo do que a necessidade de que a superação das barreiras da linguagem seja feita por outro? Ele preferiu não responder, e sua reação não foi das melhores.
Meu questionamento partiu da inquietação ao observar como os trabalhadores — dos mais letrados aos analfabetos — ficam “hipnotizados” com discursos eruditos e rebuscados proferidos, principalmente, por políticos, um exemplo histórico disso é o celebre discurso da posse como governador do Maranhão de José Sarney em 1966, que pode ser encontrado no documentário de Gláuber Rocha “Maranhão 66” no YouTube. Nos posts “Maranhão dos Sir Neys” e no “49 anos após 1966 a história se repete no Maranhão” teci algumas críticas desses discursos hipnóticos.
Pelos exemplos trazidos acima era de se esperar que os representantes da Casa grande não se elegessem a nada porque não se comunicam com a massa das senzalas. Na prática, não é isso que acontece, quanto mais erudito e empregando os termos dos “ês” identificados por Giannotti, mais sucesso nas disputas eleitorais os políticos da burguesia conquistam em votos da senzala, o poder econômico não pode ser ignorado.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930 – 2002) afirma que as posições de classe na sociedade capitalista são percebidas pelos habitus de classe e pelo Capital Cultural que os indivíduos acumulam ao longo de sua vida. O capital cultural e a linguagem utilizada por cada classe são discussões que aproximam os dois autores.
Se para Bourdieu, os indivíduos da classe burguesa têm capital cultural, por exemplo, detém de um vocabulário mais amplo cujas palavras dos “ês” — intelectualês — não são tidas como uma muralha, mas como um ponto turístico como a própria muralha chinesa, o que o identifica como pertencente de uma classe elitizada em termos econômicos e culturais. Para Giannotti, pertencentes à Casa Grande.
Na outra ponta estão os indivíduos das classes populares, que sem condições de acesso à cultura e formação educacional, que lhe possibilitariam o acúmulo de capital cultural, são mantidos circunscritos ao galpão no fundo da Casa Grande, a senzala. Tal isolamento não diz respeito apenas às condições materiais, mas também da linguagem instrumentalizada pelos patrões.
Bourdieu é um exemplo de que a tese de Giannotti não é a melhor saída para os da senzala. Ele próprio, para sair do isolamento da linguagem e da limitação do seu habitus de classe preferiu a busca pelo acúmulo de capital cultural. Um camponês que aprendeu a instrumentalizar uma ferramenta de dominação de classe como a linguagem, para usá-la contra a classe hegemônica, econômica e culturalmente dessa sociedade da exploração.
Nem Giannotti nem Bourdieu estão totalmente corretos em suas propostas de superação das muralhas de classe e da linguagem, primeiro, porque as propostas estão limitadas à estrutura educacional capitalista, seja a de Bourdieu pela busca de conhecimento, seja a de Giannotti pela manutenção da dependência dos sujeitos da classe trabalhadora à tradução dos vocabulários de sua língua. Segundo que ambos ignoram a necessidade de superação das condições materiais onde os da senzala se encontram — explorados — como se tal realidade fosse imperceptível por eles próprios.
A tomada de consciência de uma classe se dá pelas condições materiais dela, o que os levará a uma busca consciente de entendê-las, seja aprendendo a traduzir a linguagem dos dominantes, seja pela busca consciente de um capital cultural que pode ser usado como instrumento de luta social pela classe trabalhadora contra a burguesia residente na Casa Grande.
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1 Membro do Núcleo Piratininga de Comunicação – NPC e formador de lideranças sindicais além de colaborador em veículos de comunicação papular. No site do jornal Brasil de Fato há uma matéria em lembrança dos quatro anos da morte desse importante intelectual orgânico da classe trabalhadora no link: VITO, PRESENTE!
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. Condições de classe e posição de classe. In: _____. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção Sérgio Miceli — São Paulo: Perspectiva, 2007 — (Coleção estudos: 20/ dirigida por J Guinsburg). Capitulo I, p. 3 – 26.
GIANNOTTI, Vitor. Muralhas da linguagem. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.